Um animal que inventa a si próprio

RV Cultura e Arte
Salvador
11.08 a 11.09.2021

A exposição “Um animal que inventa a si próprio” traz uma série de pinturas e desenhos desenvolvidos no último ano. As pinturas são feitas com tinta acrílica, spray, caneta posca e bastão de tinta a óleo. As imagens são construídas através de muitas camadas finas de tinta que vão se desdobrando em um ambiente pictórico de onde emergem desenhos, gestos, rabiscos e imagens. Aqui elementos naturais como animais e plantas se misturam com outras figurações através de uma sobreposição que remete às paredes e muros das cidades, com suas diversas intervenções e camadas. Há também a presença de pássaros, cães e lobos que figuram uma natureza mista, aberta ao olhar e às diferentes interpretações simbólicas.


Na série de desenhos “Lençol Freático” utilizei carbono, grafite, spray e colagem sobre papel. As imagens trazem elementos que remetem ao ciclo da água, às sensações e à passagem do tempo. As imagens querem romper um grid regular presente na composição, na qual podemos ver figuras humanas, árvores, elementos naturais e outros gestos e texturas. Nas imagens há muito branco e muito silêncio. Quis construir uma composição que abrisse espaço para diversas narrativas possíveis a partir dos desenhos. Chamando a atenção para tudo que está por baixo, nos pensamentos inconscientes, nas sensações, nos sonhos… assim como água que passa nos lençóis freáticos por debaixo da terra.


Minha pesquisa artística até então, tem se voltado para a criação de momentos poéticos na cidade, através de obras efêmeras e gráficas que convidam as pessoas a se envolver com o espaço público e re-poetizar o cotidiano. Além de fazer parte de um coletivo e estudar o tema como pesquisadora, me dediquei a compreender as dinâmicas de efemeridade de obras/acontecimentos que acontecem no espaço público gerando


encantamento, envolvimento e afeto. Nesta exposição busco apresentar um novo momento no meu processo criativo, no qual estou experimentando a criação de imagens através de um mergulho no processo de pintura e desenho. Este processo, novo para mim, demanda muita concentração e dedicação, pois há uma conversa muito profunda com as imagens, texturas e materiais que criam ambientes gráficos e pictóricos através de um diálogo denso entre o artista e a obra.

Estes trabalhos foram desenvolvidos entre 2020 e 2021 e coincidem com o isolamento social imposto pela pandemia. Neste momento histórico, todos nós fomos convocados a se reinventar, reimaginar e se reconectar com outras maneiras de viver e se realizar. Assim, nossa imaginação foi colocada à prova no sentido de uma criação de novas maneiras de se situar no mundo que nos apresentou a impermanência das coisas vivas e as mutações no nosso habitat.


O título da exposição foi pensado para falar sobre a capacidade de criação de nós mesmos. O ser humano como único animal a inventar a si próprio abre canais para se pensar e recriar as diferentes possibilidades de percepção e criação das coisas no mundo, já que somos uma invenção de nós mesmos e contribuímos para que o mundo se mantenha e se renove. Viver é inventar-se, inventar nossa vida, nossa função no mundo, nossa presença. Através da arte acessamos nosso mundo simbólico, imaterial, poético e filosófico. Eu espero que meu trabalho possa criar momentos de contemplação, fruição e criação através de um campo aberto de sentidos que possam conduzir e criar muitas imagens interiores que nos inspire a se reinventar assim como estou tentando fazer agora.

Brígida Campbell





Acrylic, spray and pen on canvas. 120x160 cm



Acrylic, spray and pen on canvas. 120x160 cm




Acrylic, spray and pen on canvas. 120x160 cm



Acrylic, spray and pen on canvas. 120x160 cm





An animal that invents itself Acrylic, spray and oil stick on canvas. 140x160 cm


A body that eats, that heats Acrylic and spray on canvas. 120x140 cm


Put me in the box of inexplicable things and you will know who I am Acrylic, spray and oil stick on canvas. 120x140 cm


Strange Beauty Acrylic and spray on canvas. 120x140 cm




At night the skin sprouts
Acrylic, spray and oil stick on canvas. 120x140 cm



um animal que inventa a si próprio

Maria Angélica Melendi

 

O animal tem memória, mas nenhuma recordação  1

Heymann Steinthal.



Na Biblioteca Ambrosiana de Milão, nos conta Giorgio Agamben[2], há uma Bíblia Hebraica do século XIII ilustrada com belas miniaturas. Na última página, representa-se o banquete messiânico, onde os justos se deliciam com a carne dos animais escatológicos. Mas, para nossa surpresa, o miniaturista medieval representa todos os homens com cabeça de animal. O filósofo postula que no reino messiânico a natureza animal seria transfigurada, de acordo com a profecia de Isaias[3]:

Morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo se deitará com o cabrito, e o bezerro e o leão viverão juntos, e um menino os guiará.[4]

Provavelmente, o artista desconhecido que iluminou o Antigo Testamento da Ambrosiana pensava que as relações entre os animais e os homens teriam, no final dos tempos, uma nova forma. O homem, então, haveria de se reconciliar com sua natureza animal.

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Vi, pela primeira vez, as pinturas de Brígida Campbell no Instagram. Foram demasiados meses de solidão e raiva durante o isolamento imposto pela pandemia. Mas um dia, apareceram na tela imagens que traziam uma promessa de felicidade. Magentas intensos, rosas audazes, laranjas vibrantes, cálidos amarelos, turquesas brilhantes, dourados... Neste inverno de desassossego brotara a possibilidade de um verão quase esquecido. Evoquei Matisse, doente, trancado por ordens do comando alemão, na sua casa em Nice, fazendo os seus magníficos guaches recortados. Não porque houvesse alguma proximidade entre um trabalho e outro mas pela aposta na restauração do mundo e da vida.

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A exposição leva por título "um animal que inventa a si próprio". A enigmática frase encaminha para uma reflexão sobre a animalidade que há em nós, sempre esquivada ou oculta. Na linguagem popular, e ainda na política, existe uma tendência a diminuir o humano a partir da animalização: o homem-macaco, o menino selvagem, o homem fera. Na modernidade, o judeu, o escravo, o negro, o índio, o bárbaro, o migrante, o estrangeiro aparecem como figuras animalescas com formas humanas[5], o não-homem é desqualificado através da humanização do animal.

Mas, como um animal pode-se inventar a si mesmo? Quando deixa de ser metáfora do humano ou de virtudes ou defeitos humanos? Quando deixa de ser uma fera? Quando é um animal em si mesmo e não um substituto do humano, porém mais dócil, menor, menos demandante, muito menos necessitado?

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Nestas pinturas, nestes desenhos, os animais – pássaros, sem dúvida, mas também cachorros ou lobos, aparecem, silenciosos, brancos, quase transparentes, feitos de traços delicados, de aguadas translúcidas. Flutuam num espaço que é, ao mesmo tempo, sólido como um muro e impalpável como um céu.


Um espaço celestial, rabiscado por signos, plantas delicadas, manchas, estrelas,  borrões, figuras geométricas, um céu que tem as cores que aparecem naquele limiar que sucede ao crepúsculo ou que antecede às primeira horas do dia, o céu do princípio ou do fim da luz, onde os amarelos se transformam em alaranjados ou os rosas em morados.

Um muro igualmente tocado pelos primeiros ou os últimos raios do sol, onde Brígida – artista urbana desde o princípio – , grafita, grava, picha, rabisca, desenha, pinta. Um muro como palimpsesto que deixa ver uma duas três, múltiplas camadas de traços, superfícies, riscos, desenhos serigrafados, aguadas...

A pintura plana explora a infinita riqueza das superfícies, sem desejar profundidades falidas nem transcendências retóricas. Pura pintura como queria Clarice: tinta sobre a tela, o cheiro do material e o barulho áspero do pincel raspando o suporte. Um corpo recluso se entrega aos gestos largos sobre o suporte pictórico ou aos pequenos e precisos  sobre o papel.

Os desenhos, mais delicados, deixam ver figuras humanas diminutas, poucos animais, árvores e signos gráficos que se agrupam em um setor da folha deixando grandes espaços vazios. Comungam do mesmo espírito das pinturas, se abrem porém a dimensões mais extensas e mais íntimas.

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Por força do hábito busquei uma genealogia para as pinturas (os desenhos são mais próximos dos trabalhos de Brígida que conheço faz tempo), mas fora de suas referencias ao grafite e a pichação foi difícil encontrá-la. Viram a mim as delicadas aquarelas de Julius Bissier, as belas aguadas de Helen Frankenthaler, os riscos e rabiscos de Cy Twombly, mas são somente aproximações mais ou menos distantes que provem de uma memória de imagens não atualizada.

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Entre 2003 e 2004, os integrantes do Grupo Poro, entre eles, Brígida Campbell, realizaram uma intervenção urbana durante a qual colavam adesivos fluorescentes em locais sem cor. O título do trabalho era: ,Imagem… cor.

Nas cidades, onde as ruas, os passeios, os muros, os postes, as grades e até os carros eram de um cinza multiforme e monótono, os jovens artistas inseriam quadrados de papel colorido com a palavra COR. A paisagem urbana mudava com esses destelhos, nem que fosse até as próximas chuvas.

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A questão permanece. Quem é esse animal que se inventa a si próprio? A frase impregna de enigmas desenhos e pinturas. Voltamos a miniatura da Bíblia Hebraica, será que se acerca o fim dos tempos e que nos estamos reconciliando com nossa animalidade?

Desde 2020, a rua, tornou-se perigosa, intransitável, ( talvez já o era antes, mas estávamos sob outras as ameaças), nós mesmos nos tornamos perigosos transmissores de um vírus incurável. Nosso presente tem se tornado a pior das distopias. E então, Brígida  Campbell começa a pintar e suas telas nos arrastam para esse mundo quente e colorido, aconchegante e luminoso, por onde transitam signos, símbolos, e bestas translúcidas, um mundo que quase estávamos esquecendo.




1. STEINTHAL Heymann. Apud AGAMBEN, Giorgio. Lo abierto. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2002. p.87
2. AGAMBEN, 2002. p. 9 a 12.
3. Isaías 11:6-10 ARC
4.AGAMBEM, 2002. p.76.